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A vida interrompida 663510
Simone Kamenetz – Advogada
Sócia fundadora do escritório Kamenetz e Marcolini Advogadas Associadas
O ano é 2009. Esse é o marco do início do fim da vida como a conhecíamos. Esse é o ano em que o aplicativo WhatsApp foi introduzido no Brasil.
Antes do advento do WhatsApp, a comunicação por mensagem instantânea ou por outros aplicativos, mas nenhum com o alcance e a expressiva presença planetária atingida por essa ferramenta de conversação.
A autora que vos escreve aqui é do tempo do Telex, uma máquina que transmitia mensagens por meio elétrico para outra máquina, que traduzia os comandos digitados no aparelho remetente e os reproduzia as informações no aparelho recebedor. As mensagens poderiam ser enviadas a qualquer hora; para enviá-las era necessário que o operador do telex estivesse presente, mas para recebê-las bastava que a outra máquina estivesse ligada.
Do Telex, evoluímos para o fac-símile, um aparelho conectado a uma linha telefônica, cuja operação parecia com a de um scanner: colocava-se o papel com a mensagem escrita, discava-se o número do destinatário, recebia-se um sinal sonoro, e a máquina, então, iniciava a transmissão, fazendo o papel correr no seu interior, e devolvendo-o no lado oposto, depois de codificada a mensagem para envio.
Tivemos, também, a fase dos pagers, aquele aparelhinho que as pessoas prendiam ao cinto. Esse era o aparelho da “emergência”, pois num mundo sem celular e sem smartphones, a maneira de se alcançar alguém que não estivesse perto de um telefone fixo era ligar para uma central telefônica e informar a mensagem que deveria ser transmitida para o número do pager de quem deveria recebê-la. O aparelhinho, então, apitava, mostrando a mensagem ao seu portador.
Até aqui, a tecnologia colaborava para que as pessoas se comunicassem à distância de maneira eficiente, mas não instantânea. Havia um lapso de tempo aceitável entre o recebimento da mensagem e o retorno do destinatário ao remetente. Não existia, então, a sensação de urgência permanente que tomou conta da comunicação em tempo real inaugurada pelo WhatsApp.
No final dos anos 1980, chegamos ao futuro startrekiano – o telefone celular. Inicialmente, um “tijolo” com antena, que permitia – a um custo muito elevado, diga-se – que se telefonasse ou se recebesse ligação, de qualquer lugar, por meio de ondas curtas de rádio. Os primeiros aparelhos tinham apenas uma função: telefonar.
Quase simultaneamente, também na década de 80, a internet chegou no Brasil. A partir da segunda metade da década de 90, com o desenvolvimento da infraestrutura necessária, começam a surgir os provedores de internet. Inicialmente disponível apenas para a parcela mais privilegiada da população, em razão de seu custo, foi a partir da primeira década dos anos 2000 que essa ferramenta começou a ser democratizada, permitindo o o a parcelas menos favorecidas da população, ainda que, mesmo atualmente, a exclusão digital seja uma realidade preocupante.
Com a internet, vieram o e-mail, as mensagens de texto, os áudios, tudo evoluindo a uma velocidade nunca antes vista na área de comunicação. ICQ, MSN, SMS e, finalmente, WhatsApp, encurtaram enormemente as distâncias, o tempo entre as comunicações e, principalmente, a saúde mental dos seus usuários.
As redes sociais vieram com força a partir de 2004, com o advento do Orkut e do Facebook, ambas nascidas no mesmo ano. De lá para cá, brotaram também no ambiente virtual o Flickr, o Myspace, o Twitter, o Instagram, o LinkedIn, o Pinterest, o Vimeo, entre outras tantas. Em comum, todos esses foram e continuam a ser espaços onde cabe apenas a “vida perfeita”. Imagens de mãos segurando taças de espumante em frente a paisagens paradisíacas, ou de grupos festivos e com uma felicidade que se propõe permanente; textos entusiasmados que, em poucas palavras, transmitem uma boa ventura infinita. A existência como sempre foi – com altos e baixos, alegrias e tristezas, sucessos e fracassos – deu lugar a uma fictícia realidade de permanentes triunfos e felicidade sem fim.
Numa outra vertente, em direção diametralmente oposta, as redes sociais também viraram um espaço para denúncias, exposição da vida privada e de intimidades, e narrativas que causam cancelamentos, um fenômeno moderno pelo qual alguém ou um grupo de pessoas torna-se persona non grata à comunidade da qual pertence.
Tanto a superexposição de uma vida irreal de luxos, viagens e felicidade fabricada pelo filtro da câmera do smartphone, quanto o linchamento virtual e os discursos de ódio, vêm causando uma epidemia de transtornos psiquiátricos oriundos de uma combinação de pensamentos, emoções e percepções distorcidos por postagens ficcionais e por humilhações e constrangimentos que se tornam perenes no mundo virtual. Depressão, fruto de baixa autoestima, tristeza e permanente sentimento de frustração, e transtorno de déficit de atenção potencializado pelo uso excessivo de conteúdo digital e dos longos períodos nas plataformas digitais são disfunções que apresentaram um aumento expressivo em uma parcela significativa da população mundial.
As consequências nefastas atreladas ao uso desacertado e abusivo das ferramentas digitais não se limitam à desconstrução psicológica; elas alcançam também a esfera jurídica dos indivíduos. Ações indenizatórias por danos morais e ações criminais pelos crimes de calúnia, injúria e difamação se multiplicaram; as disputas na área do Direito de Família saíram do segredo de justiça para o palco da internet, alçando os seguidores de perfis de famosos à posição de juízes digitais que condenam e am a atacar o “réu” com base na narrativa isolada de uma das partes. Crianças aram a ser expostas ao barulho virtual causado pelo compartilhamento das desavenças familiares, em especial nos casos de separação litigiosa, assim como, também, à negligência parental pela falta de controle do o de seus filhos menores a conteúdos impróprios, causando efeito nocivos que podem se tornar permanentes. Esse novo evento jurídico foi batizado de abandono digital, nomenclatura que dispensa maiores explicações.
A vida digital veio para ficar e trouxe consigo benefícios inegáveis, entre eles diversos avanços tecnológicos, encurtamento de distâncias, o mais democratizado ao conhecimento. De outro lado, no entanto, essa mesma vida se viu interrompida pelo imediatismo que se estabeleceu, pelas relações que se tornaram fluidas e pelas dores da maldade que ou a chegar muito mais rápido e de forma permanente e indelével no mundo virtual.
Encontrar um equilíbrio nesse universo paralelo é tarefa hercúlea e, provavelmente, impossível. Caberá aos pais e educadores capacitar os cidadãos, desde a infância, a fazer uso consciente e responsável – consigo e para com terceiros – do mundo virtual. A educação é a resposta e o caminho.
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