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A Atual Previdência Complementar que não Guarda sua Origem x1262
Voltaire Marenzi.
Advogado e Professor.
A previdência complementar no Brasil nasceu como um instituto de índole privada, com vocação contratual, liberdade de adesão e complementariedade em relação ao regime geral da previdência social (RGPS).
Aliás, sua regulamentação à época foi um desafio para que guardasse uma similitude, por incrível que pareça, com as Guildas já constituídas na Idade Média.
Em verdade, o gérmen destas associações, como registrou J.C. Moitinho de Almeida, tinham como objetivo funções de assistência, socorrendo viúvas e órfãos, providenciando funerais dos associados chegando mesmo a ressarcir os danos causados aos seus membros em consequências de incêndios, inundações, roubos, mortalidade de gado e outras calamidades[1].
É verdade que essas últimas situações destacadas na obra do jurisconsulto lusitano se identifica mais com o que praticam, até hoje, as empresas de seguros que têm natureza jurídica tipicamente comercial objetivando lucro.
Isso não se ava na mente do legislador quando se buscou conceber a criação de associações sem fins lucrativos com a implantação da Lei 6.435/77.[2]
Vale lembrar que esta lei da previdência privada obedeceu critérios de hierarquia constitucional, pois ao seu tempo vigia o Código de 1.916, (Clóvis Bevilaqua), que em seus comentários anotou que a consequência imediata da personificação da sociedade seria distingui-la dos membros, que a compõem.[3]
A verdade é que essas associações no decurso de sua trajetória se afastarem de sua idealização, a exemplo da proliferação de inúmeros montepios que com o tempo, infelizmente, se desviaram de sua finalidade.
Não vou detalhar de um modo mais minudente como essas entidades se afastaram de seus princípios básicos, estribados na cooperação e na assistência constituída e forjada no princípio da mutualidade, notadamente as sem fins lucrativos
Nos dias atuais seu arcabouço normativo e institucional sofreu alterações profundas, que colocam em dúvida sua aderência aos princípios originários que a justificaram. Este artigo, de um modo breve, tem o fito de registrar que houve transformações estruturais da previdência complementar, como atualmente é conhecida e denominada, sustentando a tese de que sua configuração atual já não reflete os contornos que marcaram sua origem.
As associações, sem fins lucrativos, buscavam oportunizar uma resposta à limitação do regime público de previdência social oferecendo níveis adequados de reposição de renda na aposentadoria. Pois bem. Sua fundamentação se estribou nos princípios da livre adesão, da autonomia da vontade, da capitalização individual ou coletiva e da gestão privada por entidades fechadas ou abertas, a maioria delas, como dito, sem fins lucrativos regidas, originalmente, por normas de direito privado.
Deveras. A Lei nº 6.435/1977 consagrou esse modelo, permitindo também a constituição de entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), notadamente vinculadas a empresas patrocinadoras, e de entidades abertas, operadas por instituições financeiras e seguradoras.
O marco mais relevante dessa ruptura, a meu sentir, foi com o advento da Emenda Constitucional nº 20/1998, que incluiu no artigo 202 da Constituição Federal a previsão expressa da previdência complementar, e determinou sua organização sob o regime de capitalização, mediante contribuições definidas. No entanto, foi definitivamente com a edição da Lei Complementar nº 109/2001 que reconfigurou de maneira decisiva a previdência complementar, ao estabelecer a prevalência da regulação estatal intensa, a figura da intervenção governamental, e a possibilidade de liquidação extrajudicial de entidades, com base em critérios de interesse público.
Desde então, consolidou-se uma progressiva publicização do setor, evidenciada pela criação da Previc (Superintendência Nacional de Previdência Complementar), autarquia federal com poder de regulação e fiscalização, e pela sujeição das EFPC a um modelo jurídico que mistura normas de direito público e privado, gerando insegurança jurídica e tensionamento entre autonomia e intervenção.
A par da regulamentação excessiva, o caráter contratual dos planos de previdência foi relativizado. Diversas decisões judiciais e normas infralegais têm reconhecido a possibilidade de alteração unilateral de condições contratuais pelas entidades, sob a justificativa da sustentabilidade atuarial e do interesse dos participantes. Esse fenômeno contradiz com o princípio do pacta sunt servanda, fragilizando a confiança do participante na previsibilidade do benefício.
A equiparação crescente entre planos de previdência complementar aberta e contratos de seguro de vida, especialmente após a popularização dos planos PGBL e VGBL, também desviou o regime de sua origem. Além disso, recentes medidas tributárias – como a tentativa de cobrança de IOF sobre contribuições – revelam um tratamento fiscal equivocado, que ignora a natureza previdenciária desses institutos e compromete sua finalidade social.
A previdência complementar brasileira, tal como estruturada atualmente, distancia-se sensivelmente de sua origem. O modelo fundado na liberdade, autonomia e responsabilidade contratual vem sendo substituído por um regime híbrido, excessivamente regulado, tributado e sujeito à intervenção estatal. Essa descaracterização pode comprometer a atratividade do sistema, minar a segurança jurídica e afetar a adesão de novos participantes.
A necessária modernização da previdência complementar deve preservar seus pilares fundadores, sob pena de inviabilizar sua função como instrumento de planejamento previdenciário e de desoneração do Estado.
Embora acredite que os gestores tenham responsabilidade por este desvio de finalidade como ressaltei acima, não é menos verdade que o Estado na ganância de repor seu rombo orçamentário jogue ao oblívio e destrua um instituto que nasceu com a finalidade de proteção a todos os associados que ainda acreditam que a boa-fé deve estar presente em qualquer modalidade contratual, precipuamente neste contrato associativo.
É o que penso, s.m.j.
Porto Alegre, 01/06/2025.
[1] O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado. Livraria Sá da Costa Editora. Lisboa, 1ª edição, 1.971, página 6.
[2] Art. 5º - As entidades de previdência privada serão organizadas como:
- Sociedades anônimas, quando tiverem fins lucrativos
- Sociedades civis ou fundações, quando sem fins lucrativos.
[3] Codigo Civil Comentado. Quinta Edição. Volume I. livraria Francisco Alves, 1936, art. 20, página 221.
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